domingo, 30 de agosto de 2020

Homenagem ao sexagésimo aniversário de Moisés Basílio


Luanda e Pedro.

Grato por me proporcionar um momento ímpar de felicidade na passagem dos meus 60 anos.

Esse dia, o pequeno baú e esse belo texto ficarão amalgamados em minh'alma para sempre.

Ubuntu.

Axé!

Moisés Basílio Leal

São Paulo, 26 de agosto de 2020.

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Pelo Corinthians, com muito amor, até o fim...


          A paixão surge no primeiro campeonato de futebol que foi acompanhado na Copa do Mundo de 1970, quando a seleção brasileira sagrou-se tricampeã. Tinha 10 anos de idade e estava na terceira série do curso primário. Na escola, sua querida professora Sra. Gina Bonventi, propôs uma atividade chamada jornal oral. Embalado pela vitória da Seleção e pelo gosto de torcer, assumiu sua paixão pelo Corinthians no ano seguinte acompanhando o primeiro Campeonato Nacional, lendo jornal e vendo os programas esportivos da TV. Como poucos jogos eram transmitidos pela televisão, um velho radinho de pilhas passou a ser o seu companheiro durante os jogos do Timão.
          Foi assim que o pequeno Moisés começou a se interessar pelo futebol. Lá na casa dele, em dia de jogo, o rádio ficava ligado e todo mundo acompanhava o evento. Na sua casa a mãe corinthiana e o pai são-paulino. Na casa ao lado, da sua avó, tia e primo, todos santistas, ardorosos seguidores da corte do rei do futebol. Mais da metade da sua família materna virou santista por conta do Pelé. Na opinião do Moisés por duas razões: Era negro, devoto de Nossa Senhora Aparecida e mineiro. Identidade quase total.      
          O futebol é uma paixão de muita gente pelo mundo. Nelson Rodrigues, um dos maiores cronistas do futebol do Brasil, fala da pátria em chuteira. "Não me venham dizer que o escrete é apenas um time. Não. Se uma equipe entra em campo com o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino pátrio - é como se fosse a pátria em calções e chuteiras, a dar botinadas e a receber botinadas". A época de ouro do futebol brasileiro em que nosso pequeno Moisés começa a se apaixonar por esse esporte, também é a época de sangue do regime da ditadura militar. Nesse contexto, a pátria em calções e chuteiras, a dar botinadas e a receber botinadas não seria a nação brasileira e sim a nação corintiana. "O Corinthians vai ser o time do povo e o povo é quem vai fazer o time". Essa frase de Miguel Battaglia, alfaiate e primeiro presidente do Corinthians, segue a história do clube desde 1910. É motivo de orgulho para os torcedores e se tornou parte da essência do Timão. Timão que a partir de agora seria o Timão do Moisés Basílio.

          O Corinthians do pequeno Moisés se transforma no Timão do jovem Moisés. Como todo relacionamento de paixão e amor os apelidos carinhosos são muito comuns. Nesse contexto político e esportivo turbulento (Jejum Corinthiano, um período de quase 23 anos sem ganhar títulos de grande expressividade e período de repressão da ditadura militar) vai aprendendo com outros companheiros que o futebol também pode ser revolucionário. “Caminhando em direção contrária à tese do esporte como "ópio do povo", as interpretações do fenômeno futebolístico brasileiro o têm considerado como um fenômeno de natureza simbólica, em que o jogo se transforma em um espaço de representação dos conflitos e dilemas da sociedade”.
          O livro Batismo de sangue de Frei Betto (1987) inicia assim: “Foi na realidade uma noite do povo, publicou O Globo em sua edição do dia seguinte. Espetáculo de gala no estádio do Pacaembu, em São Paulo. Pelé teria festejado seu grande dia se o resultado fosse ao contrário. Mas foi o Corinthians que marcou quatro gols no Santos. Magnífica atuação do time do Parque São Jorge. A equipe praiana fez apenas um tento. E não foi de Pelé, foi de Edu.
          No intervalo do jogo, a torcida movimentava-se, agitada.  O cheiro de suor misturava-se ao hálito úmido do clima chuvoso da noite quente, dedos nervosos cruzavam, entre mãos estendidas, dinheiro, pipocas, refrigerantes, sanduíches, amendoim torrado. Possantes holofotes cobriam com um véu branco o gramado verde do Pacaembu. Nos vestiários, os times recobravam fôlego. De súbito, um ruído metálico de microfonia ressoou pelo estádio.  Um ajustar de ferros puxados por corrente elétrica.  Cessaram as batucadas, silenciaram as cornetas, murcharam as bandeiras em torno de seus mastros. O gramado vazio aprofundou o silêncio curioso da multidão.  O locutor pediu atenção e deu a notícia inusitada para um campo de futebol: Foi morto pela polícia o líder terrorista Carlos Marighella”.
          Esse cenário do Pacaembu descrito durante o anúncio da morte de Carlos Marighella é o palco onde durante muitos anos a nação corintiana realizou seus rituais que o Jovem Moisés aprendeu a ganhar ou perder, mas sempre com democracia. Que nós não vivemos de títulos, vivemos de Corinthians. Essa nação que já pode gritar é campeão! Essa nação que já pode gritar democracia! “Nesses contextos, a ideia de nação assume a função de representar como uma natureza os laços de coesão social de uma comunidade (como etnia, língua, costumes e lembranças históricas comuns), com o objetivo de legitimar uma estrutura política, o estado soberano, cuja autoridade não mais emana de Deus ou do Rei, mas dos cidadãos”.
          “Defendemos a ideia de que o esporte traz, inscrito em sua estrutura formal de jogo, um certo potencial simbólico, herdado de sua origem comum com o ritual”. Tais rituais que esse apaixonado corintiano frequentava insistentemente junto com amigos e parentes, nem sempre corintianos, e fortalecendo os laços dessa comunidade alvinegra. O maior laço de todos foi levar seu filho e sua filha (e aqui agradecemos imensamente a atitude) para participar dos rituais e fazer parte dessa nação do bando de loucos. A paixão virou amor.
          O pai Moisés agora tinha que levar sempre três. Não é nada fácil esse amor. Era uma rotina bem puxada ter que ficar horas e horas na fila para poder assistir o Timão. Chegar ao estádio também não era fácil. Eram duas as opções: A primeira era ir de carro e a segunda é usar o transporte público. De carro da sua casa – Sapopemba até o Pacaembu – dava em média 45 minutos. Se não chegasse em cima da hora era uma guerra pra estacionar. Ou tinha que pagar estacionamento caro ou enfrentar a máfia dos flanelinhas. Pronto, chegou ao estádio do Pacaembu e a luta continua... Uma fila quilométrica para passar na revista policial. Tropa de choque nas proximidades e um grupo mal-humorado de policiais fazem de forma agressiva a revista dos torcedores. O paradigma lombrosiano do século XIX come solto. Ele, por estar de suspensório por baixo da blusa de frio e provavelmente pela cor da cútis, é minuciosamente revistado. Cita o suspensório, pois o policial cismou com seu adereço. Seu filho, com suas melenas a la rastafári, também é alvo da severa vigilância lombrosiana. Sua filha sempre com uma bolsa suspeita também sofre revistas. Nesse momento a figura que vem à mente é a da condução de uma manada de gado. A alimentação é de péssima qualidade e de altíssimo valor.
           Esse amor é cheio de outros rituais. Moisés sempre segue com o espírito solidário e de comunhão de um fiel corintiano. Sempre disposto a agregar mais um louco no bando independente de quem seja. Com sua voz mineirinha diz: “tem um ingresso sobrando...”. Para Moisés sempre terá um ingresso sobrando para quem quiser vislumbrar os rituais do Clube Sport Bretão. “É necessário que esteja sempre presente a ideia de uma solidariedade, de um "companheirismo profundo" que se estenda horizontalmente sobre todos os membros da comunidade”. Dessa forma, é possível ver ao longo do tempo o tanto de gente que já passou pelo ritual e sempre com o Moisés como pilar desses encontros potentes. 
          Da família sempre está presente seus filhxs. Por vezes vai acompanhado de Meire seu querido amor! Ainda da família estão presentes nessa comunidade altaneira Maurício, Raíssa, Filipe, Kauê, Júnior e cia. Os companheiros mosqueteiros são Duda, Humberto, Vitor, Edu, Neto, Careca. Faz-se aqui uma menção especial para dois grandes nomes que não estão mais com a gente: o querido e tranquilo Tio Zezinho e o emocionado Toninho que nos últimos tempos conseguia ver o jogo no estádio sem virar de costas, mas sua cara continuava sempre vermelha de tanto fanatismo e amor. Dentre todas e todos dessa nação Toninho faz jus a oração: “Doutor eu não me engano, meu coração é corintiano”. Nessa comunidade alvinegra Moisés sempre como o anfitrião dá informações sobre o jogo, sobre o estádio, sobre a torcida, sobre histórias, sobre a vida! 
          Os rituais se iniciam pensando em que manto será vestido. Escolher a camisa que deu sorte em clássicos e guardar no fundo da gaveta o manto do azar pra usar só em jogos sem importância. Vai direto de casa ou direto do trabalho? É fim de semana ou é durante a semana? No dia do jogo sempre é difícil pro Moisés. Dia de jogo do Corinthians é sempre um dia distinto. Fica agitado desde o acordar. Levou o rádio, carregou o celular, trouxe o fone de ouvido? Ingressos? Vai acompanhar o jogo no campo? Ouvindo no rádio? Vendo na TV? O Moisés prefere sempre acompanhar aos jogos de corpo presente nas arquibancadas do estádio, pois aí não há nenhuma interferência e dá para sentir o pulsar da partida e formar juízo próprio de valor. Porém quando assisti na TV o faz com o velho e tradicional rádio e já não corre o risco de comemorar ou ficar com raiva atrasado. Porém faz os outros passarem raiva sempre comemorando antes.
           Sempre depois dos jogos é obrigatório a parada para o ritual da gastronomia. Pode ser um cachorro quente. Pode ser pizza ou comida. Mas sempre tem que ter batata frita! Sempre com o manto somos bem vindos no Moraes com um filet, no Charrete com pintado a baiana, no Ponto Chic com bauru, no Sujinho com bisteca e repolho, uma boa pizza do Castelões (reduto da porcada) ou na Ideal, um pernil na barraca em frente ao Pacaembu, um peixinho no japonês ou no antigo Bambu. Pode ser em qualquer lugar, desde que com o manto do Corinthians no peito e com histórias de vida na boca! Pra finalizar nos despedimos dizendo: “Você vai no próximo?”. Sim, nosso ritual é onde está o Corinthians e nessas celebrações cantamos, dançamos, comemos e fazemos a vida! 
           O Moisés cinquentão já é sócio torcedor e agora o novo estádio do Coringão é o Itaquerão que fica do lado leste de São Paulo. Parece presente divino. Tudo ficou mais fácil. O amor criou raízes no território onde Moisés tem sentimento de pertencimento. Fala sempre com orgulho que chega rapidinho no estádio do Todo Poderoso, com estacionamento e ingresso comprados pela internet. Acompanhar o Campeão dos Campeões, jogo a jogo é um desafio. Muitas vezes não dá para assistir a todos os jogos ao vivo, pela televisão ou pelo rádio. O remédio é saber do placar depois e acompanhar as reprises pela televisão ou pela Internet, e ler a reportagem no jornal do dia seguinte. A Internet revolucionou o acessar da informação. Moisés lembra que no passado distante, lá pelos idos dos anos 70, quando perdia o jogo para saber o resultado era muito difícil. Muitas vezes ia dormir sem saber o resultado e só obtinha a informação no outro dia quando ia trabalhar e lia os jornais pendurados nas bancas de jornal.  Conforme o resultado logo comprava a edição do dia, geralmente a famosa e saudosa Gazeta Esportiva, que hoje só existe em edição eletrônica.
          A partir de agora chegará o Moisés Sex! Um sexagenário pronto pra colher o que semeou, plantou e regou ao longo de toda sua vida! É um Negro corintiano que fugiu da ideia do “complexo de vira-latas” que o mesmo cronista Nelson Rodrigues condena a grande fraqueza do homem brasileiro. Sua auto-estima e auto-confiança são como o sangue na camisa do Zé Maria e Basílio! Seus conselhos são como os lançamentos longos e passes precisos de Roberto Rivellino, Zenon, Neto e Marcelinho! Sua proteção é como a zaga com Domingos da Guia, Goiano, Chicão, Gil e Gamarra! Sua presença é como a invasão corintiana no Maracanã ! A história da sua vida é democracia! Seu acolhimento é como uma defesa do Cabeção, Gilmar, Ronaldo e Cássio! Sua tranquilidade é como o Dida comemorando o título mundial depois de Edmundo chutar o último pênalti pra fora em pleno Maracanã lotado!  Sua fé e religião também é São Jorge e um pouco de Oswaldo Brandão! Seus exemplos e disciplina são como as táticas da Titelogia! Seu Carisma, sabedoria e empatia são como as finalizações de Baltazar, Luizinho, Casagrande, Sheik, Liedson, Tevez, Ronaldo e companhia! Sua solidariedade é potente como um chute do Célio Silva ou lateral do Gralak! Sua vontade é como uma corrida do Mirandinha! Teu abraço é como um calcanhar do Sócrates! E teu amor um grito de gol! Esse é o Timão do Moisés Basilio!
          Pai, teu passado é uma bandeira e teu presente é uma lição... Que seu futuro seja de muito Axé!
          De seus Filhxs Luanda e Pedro!